quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Autos de revista e bênção da Capela de São João Baptista de Verdemilho da Freguesia de São Pedro de Aradas, 1837-02-04



Arquivo da Universidade de Coimbra, Cabido de Coimbra, Instituições pias, cx II, doc. 3

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Elogio Histórico da Vida do Exmo. e Reverendíssimo D. António José Cordeiro, segundo Bispo da Diocese de Aveiro

Elogio Histórico da Vida do Exmo. e Reverendíssimo D. António José Cordeiro ,
Segundo Bispo da Igreja de Aveiro (1801-1813)
.
(in Jornal de Coimbra de 1813 por J. S. de F., p.179)
A perda de um varão distinto pelas suas luzes, que refletem ainda hoje de tantos Discípulos seus, formoso ornamento da Faculdade de Cânones; exemplar pela grande caridade, com que sempre proveu à subsistência do pobre, e se fez o amparo, abrigo, e remédio do órfão, da viúva, e do enfermo: respeitável pela muito alta Dignidade na Ordem Hierárquica da Igreja, a que foi divinamente promovido, e pelo fiel desempenho dos importantes deveres do seu Ministério: em uma palavra; a perda do homem sábio e virtuoso produz sempre a sensibilidade dos corações, ainda os mais frouxos. Tributo é este, que nenhum se atreve negar e virtude, se uma extrema perversidade o não tem profundamente minado e corrompido.

   Queremos falar neste momento da perda do Exmo. e Reverendíssimo Bispo de Aveiro D. António José Cordeiro, falecido aos 17 de Julho de 1813. Não somos nós os primeiros, que anunciámos o fatal acontecimento da sua morte, porque ele feriu já estrondosamente os ouvidos de seus amigos, e geralmente de todos com a rapidez, que sempre acompanha os sucessos grandes; mas empreendemos ganhar por mão a honra de servirmos á Glória do seu Nome, apontando nesta breve Memória as principais ações da sua vida: e oxalá que o nosso desvelo desperte algum polido escritor da nossa idade, que tirando-as mais ao natural represente vivamente a sua imagem, não menos à nossa vista, que aos olhos da posteridade.

   António José Cordeiro, filho legitimo do Bacharel Manuel Cordeiro, e de D. Maria Teresa de Sousa, nasceu em Coimbra. Foi regenerado pelo Santo Sacramento do Batismo na Paroquial Igreja de São Pedro da mesma cidade aos 14 de Maio de 1750; sendo seus padrinhos o Dr. António Amado, Lente de Medicina, e D. Cecília Micaela. Seus pais não afetaram descender de antigos e esclarecidos avós, antes francamente se honra de pertencer a uma honesta família. Como pios e religiosos que eram aceitaram o nascimento do menino, como dom, que o céu lhes enviara em bênção de seu afamo conjugal; porém a morte os arrebatou ambos, deixando-o órfão na tenra idade de sete anos, e roubando-lhes o prazer de empregarem seus cuidados paternais na sua educação. Tinha a providência destinado esta glória para seu tio e tutor, o Bacharel João Martins Manso, que não só deu a seu pupilo educação cristã de pura doutrina, e bons exemplos, senão também foi ele inteiramente o autor da Politica e Civil, que recebeu. Ele o mandou à escola das primeiras Letras, donde saiu sabendo-as perfeitamente; e depois ao estudo do Latim, e dos outros, que servem de preparar o espírito para as maiores ciências, e em que os moços de ordinário dão sinais do para que são. Neles mostrou o pupilo tanta habilidade, e tanta propensão para as Letras, que seu tio e tutor conveio com ele, que seguisse a Faculdade de Cânones.
Posto o nosso jovem A. J. C. entre a mocidade Académica, nem o viço dos seus anos , nem a força das companhias, nem a graça falaz das persuasões poderão abalar por um pouco o belo edifício de seus costumes, já tão solidamente cimentado no seu coração. Sisudo, honesto, e aplicado, ele se entregou avidamente à lição da Escritura, Santa, da Tradição, e dos Sagrados Cânones da Igreja. Em todas as suas ações literárias seus mestres renovarão sempre o bom conceito, que haviam formado dele, não pela celebridade de mancebo extremamente vivo e palavroso, mas pelo bom engenho e compreensão, que mostrava, e pela clareza e ordem, com que dizia. Estas prendas com a sua erudição adquirida por aturados estudos lhe granjearam a honra de ser admitido ao grémio dos Doutores da sua Faculdade, cujo grau recebeu aos 28 de Outubro de 1770, contando então pouco mais de vinte anos de idade.
   Aspirou o Dr. António José Cordeiro ao serviço e acomodação da Universidade. Acreditou-se sempre em quanto opositor, e depois de haver sabido dignamente de hum concurso, em que entrara, triunfou em fim o seu merecimento, sendo nomeado Lente Substituto da sua Faculdade pela Carta Regia de 4 de Janeiro de 1780. Logo o Real Colégio de São Paulo o quis associar a si, oferecendo-lhe uma Beca, que ele vestiu aos 30 de Julho do mesmo ano. Andados alguns tempos, novo Despacho mandou á Faculdade de Cânones a Carta Régia de 29 de Janeiro de 1790, o Sua Majestade achou então, que o Dr. António José Cordeiro era digno de ser Lente proprietário, com exercício na Segunda Cadeira do Decreto. Era esta Cadeira uma das mais difíceis e trabalhosas da Faculdade: a História , a Disciplina, a Cronologia , a Geografia, a Critica, e finalmente todos os subsídios entravam em jogo para a perfeita explanação de Graciano. Por força do seu génio laborioso e incansável, adquiriu o Grande mestre todo aquele rico e abundante cabedal de Literatura, e ele lhe veio a plumo, sempre que o pedia a matéria ; podendo afirmar-se, sem ofender a memoria dos sábios professores, que o precederão, que nenhum pôs tão ansiosamente o peito para a interpretação do Decreto, e que nenhum alcançou melhor sucesso, que ele. Seus discípulos o respeitavam pela sua sabedoria, e pela sua retidão e inteireza ; e como era irrepreensível, se aos discípulos instruía com a lição, a todos podia servir de exemplo.
Não puderam as fadigas académicas distrair A. J. C. do serviço da Igreja, a que antes se tinha dedicado, e era já ordenado de Presbítero, quando vagou a Cadeira de Cónego Doutoral da Sé de Lamego. Seu merecimento, e sua antiguidade lhe deram direito de pretende-la, e nela foi provido aos 26 de Maio de 1700. Exultava o Exmo. Bispo daquela Diocese de ver entre os Membros do Corpo Capitular da sua Igreja o homem verdadeiramente benemérito, e o seu intimo amigo, e antigo colega, e não menos por um tal acontecimento se congratulava com o Ilustre Prelado o mesmo Corpo Capitular. Ele lhes soube corresponder bem, indo residir na sua Igreja, e cumprir as obrigações Canonicais no tempo das Ferias Académicas, ainda depois de gozar dos amplos privilégios, que lhe competiam, como Deputado Extraordinário do Santo Oficio, e sobre tudo rejeitando a mudança para Canonicatos mais rendosos, a que teve direito; e se esta resolução pôde parecer derivada de sua amizade ao Prelado de Lamego , também ninguém saberá negar, que ela foi uma ilustre prova do seu desinteresse, se por ventura não pôde ser outra da austeridade de seus princípios.
Como quer que fosse, continuavam os merecimentos do Dr. António José Cordeiro à medida, que avançavam os anos de seu serviço na Cadeira do Decreto; assim que, vindo outro novo Despacho, e ultimo do seu Magistério, ele foi nomeado Terceiro Lente da sua Faculdade pela Carta Regia de 4 de Abril de 1795, porém com a declaração de continuar no exercício da mesma Cadeira do Decreto , em que ainda se desvelou pelo espaço de cinco anos, até ao de 1800.
   Vagara por esse tempo o Trono Episcopal da Sede Aveiro, que dignamente ocupara o Exmo. e Reverendíssimo D. António Freire Gameiro de Sousa , seu primeiro Bispo e Fundador, prelado de singular brandura e suavidade, que soube fazer-se senhor dos corações de seus Diocesanos, e a quem déramos aqui maior lugar, senão fora outro nosso principal assunto. E cumprindo achar sujeito, que pudesse tomar conta do rebanho destituído do Pastor, não podia encobrir-se a pessoa de António José Cordeiro, porque a fama de seus méritos, e de suas qualidades relevantes, tendo enchido o Reino todo, o afigurava de cólio a todas eminente para as mais altas Dignidades da Igreja. Andaram de acordo o conceito, e o sucesso; porque o Príncipe Regente Nosso Senhor o elegeu para Bispo de Aveiro, e assim o mandou participar pelo Aviso de 25 de Novembro do mesmo ano de 1800. A nova da eleição a ninguém fez maravilha, porque espantos não tem lugar, onde as cousas vão sua ordem natural, e somente foi Ele, quem dela se assombrou, pois sendo quem mais a merecia, ninguém menos a esperava. Todavia submisso aos Decretos Divinos intimados pelo órgão do Soberano, aceitou o Bispado; reconhecendo-se na obrigação de não contradizer a manifesta vontade de Deus, pois não havia solicitado o Cargo; e juntamente devedor ao Serviço da Igreja, para o qual tendo-se oferecido sem restrição alguma, com essa condição fora admitido a Sorte do Senhor.
Confirmada que foi sua eleição, conseguiu ser sagrado na sua Sé de Lamego, não tendo coisa mais querida do seu coração, que ser ordenado Bispo pelo seu intimo e antigo amigo, e por mais relevante titulo novo colega o Exmo. e Reverendíssimo D. João António Benet Pincio, digníssimo Bispo daquela Igreja. Nunca de toda a parte se patenteou maior efusão de afetos na cerimonia Augusta da Consagração de um Bispo, como no dia 8 de Novembro de 1801; porque se o Exmo. Bispo consecrante não cabia em si pela fortuna de ver d.ido divinamente á Igreja de Deus um homem tal, que pudesse edifica-la em pura e sã doutrina, e de ser ele quem lhe transmitisse pelo seu Ministério os riquíssimos poderes da Ordem Episcopal; o Exmo. e Reverendíssimo D. Francisco Monteiro Pereira de Azevedo, Digníssimo Bispo de Viseu, seu verdadeiro e antigo amigo, e colega, e o Exmo. e Reverendíssimo D. Bernardo Bernardino Beltrão, Digníssimo Bispo de Pinhel, seu cordial amigo, e contemporâneo académico, banhados de alegria enchiam fervorosamente seu religioso oficio de Bispos Assistentes; e o Reverendíssimo Cabido se dava mutuamente os parabéns, lisonjeado de considerar o seu Corpo Capitular, como o Seminário dos Prelados da Igreja de Aveiro, pois que do seio dela se tirava então o segundo, havendo-se achado já o primeiro em seu Ilustre Deão.
   Temos chegado à época mais brilhante da Vida do Exmo. e Reverendíssimo D. António José Cordeiro, Bispo de Aveiro. Verdade é, que o homem honrado, e o cidadão benemérito é digno em qualquer estado de iguais elogios, e tem o mesmo direito ao nosso reconhecimento, pois cumpre com a parte do serviço social, de que está encarregado; porém é indubitável, que o merecimento se apura, e o serviço se qualifica á medida da importância, e da grandeza de autoridade, e dos cargos, que se ocupam. Com efeito nada há, que possa descobrir melhor o segredo desta complicada máquina do coração humano , que o lugar de grande autoridade; e por tanto é entre a grande autoridade do Episcopado, que brilham mais esplendidamente os merecimentos do Exmo. e Reverendíssimo Bispo de Aveiro. Menos dependente, e gozando de um poder mais extenso no Episcopado, continuou então em grande as mesmas virtudes, que tinha praticado antes. Igual e coerente foi sempre o mesmo homem, mostrando-se em todo o tempo bom, não por arte, mas sim por inclinação ou natureza, e tal, que tendo sido aplaudido, como mestre, explicando as obrigações dos Bispos, cumprindo-as depois foi admirado, como Apostolo, E para que nada faltasse á sua fiel imitação, tanto que foi consagrado Bispo, logo se considerou devedor a todos os seus diocesanos; apressou sua jornada deixando sua casa, e seus veneráveis amigos e colegas; e se dirigiu para Aveiro, onde entrou no 1° de Janeiro de 1802, sem a pompa do Cerimonial.
Foi a primeira obra, com que assinalou o seu Episcopado, a sua grande Pastoral. Nesta peça, cheia de eloquência e de erudição, abraçam seus cuidados pastorais todas as suas ovelhas. A todas as classes se dirige, a todos os estados adverte. Porém conhecendo, que o ofício do Pastor se não cifra somente em fazer soar de longe a sua voz por cima de todo o rebanho; mas que é necessário descer ao meio dele, a fim de examinar de perto, quais as ovelhas morbosas, para as curar, quais as desgarradas, para ir após elas; e que os Sagrados Cânones da Igreja tinham determinado as Visitas Pastorais, como próprio e acomodado meio de alcançar aquele fim; Ele se lançou prontamente entre os seus diocesanos, e fez a primeira Visita de todo o Bispado, mal fadada, porque nela adoeceu, mas de boa estreia para o aproveitamento espiritual do rebanho, que muito se aumentou depois com as outras Visitas, que repetiu pessoalmente sempre que pode; e se por elas, ou por outros caminhos chegavam ao seu conhecimento alguns apuros ou escândalos, nunca deixava de empregar o seu vigor Apostólico para os destruir e arrancar, posto que um bom sucesso não coroasse sempre a retidão de suas pias intenções.
A instrução do clero lhe mereceu também muito particular cuidado, desde o principio do seu Governo, como quem entendia, que o clero sem ela não podia subir ao lugar de dignidade, que lhe compete, nem cooperar convenientemente no grande destino da adição, e salvação do rebanho. Para este fim, instaurou o Seminário, que seu antecessor tinha na Vista Alegre em Ílhavo, impetrando do Santo Padre um Breve datado de 27 de Março de 1804  pelo qual obteve a faculdade de estabelecer o Seminário no lugar de Requeixo com doze seminaristas, o que ele em pronto executou pela sua Provisão de 29 de Junho de 1804. Porem advertindo depois, quão necessário era chegar junto a si, e alentar com o seu bafo esta nova e tenra instituição, requereu ao Papa outro Breve declaratório do primeiro, que lhe permitiu mudar o Seminário para onde quisesse, com a clausula, de proibir ao Vigário Capitular mover nele coisa alguma do estado em que o achasse por sua morte; e ele o cumpriu pela sua Provisão de 8 de Junho de 1805, mandando passar o dito Seminário para dentro do seu Paço, onde sustentou os seminaristas e mestres à sua custa e onde o respeito da Casa, e o da sua pessoa contribuíram muito assim para a regularidade da vida, como para o aproveitamento Literário dos seminaristas e ordinandos. Para uns e outros tinha Mestres de Latim, Retórica, Filosofia, Moral, Ritos, e Cerimonias, Cantochão, e por cinco anos teve um de Teologia Dogmática, pagando suficientes ordenados a todos. Eram eles rigorosos nos exames, porque o zelo do Prelado os tolhia para serem indulgentes; e de tanto proveito foi para a Igreja de Aveiro esta maneira de proceder, que regularmente se pode afirmar, que os Clérigos, que são feitura sua, saíram logo de suas mãos não somente com muito bons conhecimentos de Doutrina para o desempenho do seu Ministério, senão também com instrução bastante do Canto Eclesiástico, para fazerem com decência as funções da Igreja , porque na verdade muito esfria a devoção do Povo a dissonância nos Templos.
No governo do Bispado era sumidamente assíduo, e muito trabalhador; porque alem de não ter horas determinadas para o despacho, porque todas as do dia eram próprias para ele; presidia indefetivelmente em todas as Sessões da sua Mesa, abarcando todos os papeis e autos, que apareciam, e corriam nela, para entrar no perfeito conhecimento deles, e até minutar os seus despachos e sentenças, tomando sobre si todo o trabalho, e não o querendo repartir pelos seus Ministros, com quanto fossem mui dignos e capazes de bem o desempenhar. E assim também , se algumas questões se excitavam sobre os direitos da sua Mitra, de ninguém confiava a sua defesa, antes era Ele o único, e o mais enérgico e poderoso advogado deles. E sobre tudo tomava a seu cargo a formação dos mapas sobre a Contribuição do Terço das Rendas Eclesiásticas, que os Exmos. Bispos devem mensalmente remeter ao Erário Régio, obra impertinente, e que pode servir para mostrar quão apurado era em todos os pontos de obrigação,
   E que diremos nós da caridade deste vigilante e piedoso Prelado? Por muito, que digamos, (é mister confessá-lo) sempre seremos diminutos, porque o justo elogio desta sua Virtude corre mais acertadamente por conta de tantas bocas, quantas foram aquelas, a quem repartiu pão sua mão benéfica. Porém não somente são os pobres seus favorecidos, são também os ricos, e todos, os que abençoam a sua Memória ; uns por agradecimento, outros por admiração, e todos por justiça. Era Aveiro, quase por todo o tempo do seu governo, campo vasto, e fértil de necessidades e misérias. Sua Barra, a fonte natural de uma parte de sua riqueza e prosperidade, tinha descaído de sua antiga situação, demandando o Sul para a distância de cinco léguas, havendo-se estreitado e entupido de modo, que em Aveiro já se não conheciam marés. Ali estancavam de inverno as águas do Vouga, e subindo grande altura alagavam uma boa parte das ruas e das casas da cidade. Alguns meses durava a inundação, que depois de haver lentamente desaparecido, deixava sobre uma vasa atoladiça e fétida, aguas turvas, chocas e corruptas. Respiravam pois os moradores de Aveiro um ar pestífero: enfermavam quase todos; e o número dos mortos excedia anualmente o dos nascidos. A Povoação desaparecia; reinava a pobreza; e a cidade caminhando rapidamente para a sua última destruição, apresentava nos seus edifícios o medonho espetáculo de pardieiros e ruinas. Tal era o deplorável estado de Aveiro, desde que este caridoso Prelado entrou, até ao ano de 1808, em que a Barra se abriu. Mas tanto que soube que muitos pobres padeciam á mingua, tomou logo sobre si o pagamento dos remédios para todos os doentes, cuja necessidade aparecesse justificada nas receitas por meios das assinaturas dos Párocos; pagamento, que lhe absorvia anualmente somas consideráveis; que foi o conforto, saúde, e vida de muitas de suas ovelhas, e que chegou a merecer o respeito e veneração, até da mesma avareza, e rapacidade Francesa, pois em atenção a ele se dobrou para diminuir-lhe a importância da contribuição extraordinária de guerra, a que havia sido injusta e impiamente condenado com todos os habitantes deste Reino.
Não se limitavam somente a este exemplo as entranhas compassivas do venerável Prelado; porque além das esmolas, que dava publicamente no seu Paço em todas as quartas feiras e sábados do ano; favorecia particularmente o Conservatório ou Recolhimento de São Bernardino de Aveiro, casa muito religiosa e pia, e acudia também a todas as necessidades extraordinárias da cidade, e do Bispado do modo que lhe era possível; tendo a descrição de não se obrigar muito a esmolas certas mensalmente, ou para as dar mais largas nos casos imprevistos, ou para não fomentar com elas o ócio dos favorecidos.
Se o Exmo. Bispo de Aveiro aplicou ao socorro dos pobres principalmente as suas rendas; todavia não deixou de fazer também uso delas para tudo o mais, que era de sua obrigação. Tinha-se arruinado o Paço Episcopal; a casa de sua residência; Ele empreendeu a sua reedificação, que chegou a começar, despendendo para ela trinta e seis mil cruzados; porém deixou a seu sucessor ainda muito, que fazer na obra. Ele sem dúvida a levara ao cabo, se a morte o não atalhasse; e mesmo a tivera adiantado mais, se nestes últimos tempos não andasse despeso pelas exigências da guerra; para a restauração do Reino, outra obrigação, que lhe cabia como Bispo, e como português; pois alem de pagar pontualmente as contribuições extraordinárias de defesa que lhe pertenceram; manifestou o espirito patriótico, que o animava, oferecendo generosamente vinte e cinco cavalos para a remonta das tropas. A sua mesa, e a de sua numerosa família, muito crescida pela incorporação dos seminaristas e mestres, que tinha no Paço, era farta, não delicada. Vestia ordinário, mas limpo, e com quanto não despendesse em fasto aparatoso, todavia não faltou á decência de sua pessoa, servindo-se de tudo quanto achou rico e bom no espolio de seu Antecessor. Sabemos, que os presumidos de agora invocam a cada passo os Tempos Apostólicos, ardendo em desejos de verem os Bispos a pé, e somente com a pompa de suas heroicas virtudes. Porém ignoram eles, que foram esses os tempos das perseguições da Igreja? E serão estas, que verdadeiramente desejem ver renovadas encobrindo com zelo aparente sua tenção danada? Embora: no meio desse nobre tratamento, hoje necessário, até certa medida, para manter o respeito da dignidade Episcopal, e ainda a consideração politica, que tem nos Estados, em que a Religião he estimada e protegida, resplandecem as virtudes dos Bispos do Século 19; e cremos firmemente, que pela sua pureza, e constância na Fé , não triunfariam menos dos mais feros perseguidores, do que triunfaram os mais afamados Bispos Mártires da primeira idade do Cristianismo.
Tal era a vida Pastoral do Exmo. Bispo de Aveiro! Porém em 1808 ele se viu repentinamente perturbado no exercício dela. Soult astuto, simulado, e Francês , capitaneando um exército inimigo, entrou as Províncias de Trás-os-Montes e Minho, e chegou a ocupar a cidade do Porto. Os Ilustres Pastores, e os rebanhos de Braga e Porto se dispersarão por toda a parte, espavoridos do açoute , que sentiam vibrar sobre suas cabeças; e como o Exmo. Bispo do Porto entrasse em Aveiro pelas onze horas da noite de quarta-feira de Trevas daquele ano, trevas escureceram os corações do Exmo. Bispo, e de todos os habitantes de Aveiro. Ele se foi ver imediatamente com o Exmo. Bispo do Porto; e como soubesse sua determinação de continuar sua retirada na madrugada seguinte, e do perigo, que em Aveiro corria a segurança de sua pessoa, pela proximidade em que se achava do exército inimigo; fez já muito assustado e apressadamente a Bênção dos Santos Óleos na quinta-feira Santa, e logo transportando-se para Vagos, ai permaneceu sempre alerta do inimigo, até que forçada a passagem do Douro pela sabedoria e valor do Grande General Lord Wellington, e pelo esforço das tropas, foi restaurada a cidade do Porto, perseguido o inimigo, e expulso para além das Províncias invadidas. Alvoroçado com esta nova, ele se apressou para render na sua Catedral públicas e solenes Ações de Graças ao Senhor das Vitórias, por aquela tão assignada, que então nos concedeu do exército inimigo.
Sobre um tão feliz acontecimento nem por isso repousou o animo do Exmo. Bispo de Aveiro. Via-se toda a Espanha cortada dos exércitos inimigos, e sabia-se, que o tirano da França não desistia de executar seus planos de usurpação. Com efeito em 1810 atravessa a Província da Beira outro mais poderoso exército inimigo ás ordens do sanhudo e mal assombrado Massena, e posto que os exércitos Aliados lhe disputassem gloriosamente a passagem sobre a montanha do Bussaco, com tudo penetrando nosso grande General, que os Franceses se determinavam rodeá-lo pela esquerda, levantou o exército, abandonou a sua posição, e a cidade de Coimbra, e se retirou para as Linhas inexpugnáveis de Lisboa. Era o exército inimigo enormemente grande e temeroso. Assombrados dele, prestes desampararam a cidade os habitantes de Aveiro, e o Exmo. Bispo se refugiou nas Praias da Torreira, logo aos 26 de Setembro, donde com a certeza da restauração de Coimbra, se recolheu ao seu Paço no 1° de Novembro do mesmo ano, não para ter algum descanso, mas para vigiar de mais perto os movimentos do inimigo, que dava a Coimbra, e por toda a esquerda do Mondego frequentes vezes mostras de si. Nós não podemos descrever os contínuos sustos, em que ele viveu até á retirada do Exército Francês, porque foram tantos, quantos os rumores propagados pela boca de um Povo amedrontado; e somente podemos ainda dizer, que ele se atemorizou tanto no dia 13 de Março de 1811, que ás nove horas da noite fugiu do Paço, para ir velar num barco, que mandou fazer ao largo para além do cais de Aveiro.
   Tantos cuidados, tantos sobressaltos por certo lhe minaram a saúde. Nós o vimos em 1811 pouco depois da retirada de Massena já tão outro do que dantes era, que nos causou estranheza, e sentidamente se nos agravou mais aquela impressão pelos fins de 1812, observando-o ainda mais desfigurado e abatido. Crê-se, padecera uma diabetes oculta por largo tempo, pois era já muito adiantada e poderosa, quando a declarou a uma de muitas perguntas, que seu médico assistente lhe fizera, sugeridas todas pela obrigação do seu oficio, e pelo seu zelo; e posto que a natureza fez mostras de vencer o mal obedecendo aos remédios, todavia de súbito mudou a moléstia de caracter, tomando os sentidos e o movimento um ataque apoplético. Parece que a Providencia lhe permitiu tornar em si, unicamente para ser socorrido com os derradeiros auxílios da Religião; pois tanto que recebeu os últimos Sacramentos, assaltado de um segundo ataque faleceu aos 17 de Julho de 1813, contando somente 63 anos e alguns meses de idade, e no Episcopado 11 anos e meio.
Ainda suas ovelhas dirigiam ao Céu fervorosas súplicas pela vida do Pastor, quando da alta torre um grave som anunciou tristemente a sua morte. Pálido assombro a todos toma de improviso; uns emudecem, balbuciam outros; qual á vista do Paço alaridos levanta, e gemidos; qual no centro das famílias e dos c1rculos lhe conta a vida entre soluços. Tudo era consternação, tudo sentimento, tudo dor.
Bem parecia, pormos neste lugar o fim do nosso discurso, se não tivéramos de acompanhar também a pompa fúnebre, que levou até ao sepulcro o cadáver do grande Bispo. Mas aonde nos leva nosso propósito? Quem pode penetrar através da multidão, que segue o féretro! Não é como de ordenadas filas de silenciosos soldados, que para últimas honras de algum superior Oficial (talvez aborrecido) forçara o rigor da disciplina militar; é um grande número de pobres apinhoados, que atraídos de saudade, trespassados de dor, e debulhados em lágrimas vão pranteando altamente a perda de seu Benfeitor, e de seu Pai. Eles lá foram engrossar o clamor do Ámen doloroso, respondendo á ultima deprecação, que os Ministros do Santuário fizeram pelo seu descanso pacifico. Eles permaneceram em piedoso cortejo a seu corpo, enquanto lho não roubou á sua vista a escuridão do sepulcro. Mas se a campa fria pode esconder os restos da sua mortalidade, as suas virtudes não consentem, que o esquecimento se apodere do teu Nome.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Breve Pontifico dado ao Bispo de Aveiro pelo Papa Pio VII sobre o uso de Unto ou Pingo de Porco

Pastoral  de 20 de Fevereiro de 1804 do Bispo de Aveiro, em consequência dos Breves Pontificos dirigidos ao ao Exmo Bispo de Aveiro pelo Papa Pio VII em 9 de Setembro de 1803 e 13 de Janeiro de 1804
Dom António José Cordeiro por Mercê de Deus, e da Santa Sé Apostólica, Bispo de Aveiro, e do Conselho de Sua Alteza Real o Príncipe Regente Nosso Senhor, etc.
 Aos Reverendos Párocos, Clero, e Povo do Nosso Bispado Saúde e Paz em o Senhor.
Tendo-nos sido propostas, tanto que entrámos pela primeira vez na Nossa Diocese, as questões a que os Reverendos Confessores e Directores das Consciências dos Fieis se suscitavam frequentemente sobre o uso antigo que havia no Distrito de Vale de Cambra deste Nosso Bispado, de temperarem os Povos dele as suas comidas com Unto, ou Pingo de porco entrámos no exame e averiguação deste uso, da sua extensão, e das suas causas; e achámos que o mesmo uso se havia estendido modernamente a muitas outras Freguesias do nosso Bispado, aonde nunca o tinha havido, e que nas Freguesias aonde ele era antigo muitas pessoas de timorata consciência praticavam o mesmo uso com escrúpulo de consciência, em razão dos diversos Pareceres dos Reverendos Párocos e Confessores, e mesmo da autoridade de um Visitador, que arbitrariamente e sem ordem do Nosso Exmo. Antecessor, passou a condenar aquele uso antigo nos capítulos que estabeleceu em algumas Igrejas.
E desejando Nós por uma parte evitar os escrúpulos dos Povos do mesmo Distrito, e os escândalos e pecados que os de outras Freguesias cometiam usando do Unto, ou Pingo de porco, não havendo nessas mesmas Freguesias o antigo e legítimo, uso do sobredito Distrito; e pela outra parte ocorrer à necessidade e pobreza da maior parte dos Povos do Nosso Bispado, que não podem comprar azeite por falta de dinheiro, e por ter chegado a excessivo preço o dito género. Dirigimos as Nossas suplicas ao Santíssimo Padre e Senhor Pio VII. para que nos concedesse a Faculdade Apostólica de podermos dispensar com todos os que se acharem no Nosso Bispado, ou sejam naturais dele ou de fora, no tempo que estiverem neste Nosso Bispado, a fim de licitamente e com boa consciência poderem, dentro do Bispado somente, temperarem as suas comidas com Unto, ou Pingo de porco, nos dias de abstinência tanto ao jantar como à ceia, e nos dias de jejum somente ao jantar, guardando em tudo o mais a forma do jejum, as quais suplicas foi o mesmo Santíssimo Padre servido benignamente atender pelos Seus Breves, datados de 9 da Setembro de 1803, e de 13 de Janeiro deste ano de 1804, cometendo ao Nosso arbítrio e consciência o dispensarmos na forma que fica exposto: pelo que usando da Autoridade e Faculdade Apostólica que nos é concedida nos sobreditos Breves, havemos por bem dispensar e conceder a todos os que estiverem ou se acharem dentro dos limites do Nosso Bispado, tanto Seculares como Eclesiásticos, e ainda Regulares de um e outro sexo (excepto tão somente aqueles que por voto solene são obrigados a abster-se de comidas de carne), que possam legitimamente e sem escrúpulo algum de consciência usar do dito Unto, ou Pingo de porco, nos dias de abstinência tanto ao jantar como à ceia, e somente ao jantar nos dias de jejum, ainda que seja Têmporas, ou Vigílias, ou Quaresma , sendo obrigados a jejuar; porquanto aos que não tiverem obrigação de jejum permitimos o dito uso também à ceia.
   Exortamos porém a todos, que nos seis dias da Semana Santa se abstenham do uso do Unto, ou Pingo de porco, por serem dias em que deve haver maior austeridade e mortificação, renovando-se neles a memoria dos principais Mistérios da nossa Religião, e da Paixão e Morte de Nosso Senhor, Jesus Cristo.
E para que chegue à notícia de todos Mandámos sob pena de obediência, aos Reverendo Párocos, que depois de registarem nos Livros das Pastorais esta Nossa Ordem Circular, a publiquem no primeiro dia de preceito ao Povo na Estação da Missa, e a façam publicar nas Capelas dos Lugares que tiverem Capelães; e todos os anos em um dos Domingos próximos à Quaresma tornaram a ler a mesma Ordem per si na Igreja Paroquial, o pelos Reverendos Capelães nas Capelas dos Lugares da respectiva Paroquia. 
Dada em Aveiro sob Nosso Sinal, e Sêlo das Nossas Armas aos 20 de Fevereiro de 1804.
= António, Bispo de Aveiro.