quarta-feira, 9 de maio de 2012

O Inventário - Sinalizar e identificar no processo de salvaguarda dos bens culturais da Igreja

HUGO CÁLÃO
Mestre em História e Património
(in revista do SNBCI: Invenirenº4, caderno de segurança e furtos, 2012, 45-47)

Os bens culturais da Igreja constituem, sem dúvida, a história continuada, e a mais real prova, da vida religiosa e social do país. A história nacional não se escreveria sem este. Por isso, como registo físico da nossa memória, é essencial a sua conservação, valorização e divulgação.

Este património cultural, o religioso, deve conduzir as pessoas ao encontro com a vida da Igreja e deve mostrar como, ao longo dos séculos, essa mesma vida se foi adornando de obras de arte insignes, ao mesmo tempo que se coadunava com o ambiente cultural. Só assim se poderão conduzir todos os que usufruem do seu contacto (apreciadores, turistas, investigadores, seculares, leigos, crianças) na direcção dupla da memória deste património e das circunstâncias da vida da Igreja, onde os objectos/documentos se deverão incluir. Só neste sentido é que os objectos são, não apenas objectos materiais, mas bens criados por uma comunidade que organiza no tempo a sua própria ideologia cristã.

A Igreja, consciente da responsabilidade que lhe cabe na preservação destes bens valiosos, tantas vezes insuspeitados,dispersos e até em risco de conservação, sabe que tem no património um lugar de memória das comunidades cristãs e um factor importante de cultura para a nova evangelização.

Logo, no pensamento da Igreja, o património serve para ser transmitido e utilizado, e por isso, dispõe sobre este no Direito Canónico.

O património religioso, nas suas vertentes materiais e imateriais, nomeadamente artísticas, devocionais e documentais, ocupa um lugar importante na sociedade da informação e do conhecimento, exigindo, cada vez mais, não só a utilização dos mais actualizados recursos disponibilizados pelas novas tecnologias, mas também um conjunto de recursos humanos capacitados para os desafios da inovação permanente, com capacidade para investigar em domínios vários.

O inventário e a identificação destes pecúlios são pois os primeiros passos a dar, tarefa essencial e de extrema importância para qualquer estratégia de divulgação/mediação.

Usando a sabedoria popular, “quem não sabe o que tem, não sabe o que há-de fazer!”
Só neste sentido estaremos a cumprir a missão de o proteger e divulgar.

Como se entenderá, a inexistência de um inventário em todas as 4357 paróquias das dioceses portuguesas, ou o seu carácter não sistemático e lacunar (levantamento parcial que não abranja a totalidade das colecções ou fundos), agrava os riscos de perdas, desaparecimento e/ou furtos indetectáveis.

   

Acreditamos que só estaremos a cumprir a missão de o proteger e divulgar se o rigor imposto nesta tarefa se apoiar numa boa descrição das peças e interpretação iconográfica, na sua historiografia com o suporte de fontes informativas que validem a sua autenticidade, em estudos comparados, na sua imagem fotográfica, medições, descrição do material e análise da sua degradação física.

No caso da diocese de Aveiro, diocese que temos trabalhado com proximidade, longe estamos de cumprir este quesito. Mas o “caminho faz-se caminhando” pelo que alguns passos já foram dados neste sentido.
Nas 101 paróquias da diocese, tal como aconteceu com as restantes do país, sempre houve preocupação com os bens culturais, existindo inúmeros arrolamentos descritivos de quantidade e tipologia de objecto. Com a criação de Juntas de Paróquia em 1835, organismos que sustentavam e geriam o património paroquial, a questão de um arrolamento de inventário tornou-se uma exigência. Em 1911, consequência da Lei e Separação das Igrejas do Estado, foram arroladas todas as paróquias nacionais, inventários que poderemos consultar hoje online no arquivo digital da Secretaria Geral do Ministério das Finanças (www.sgmf.pt), listagens preciosas no despiste actual de possíveis perdas ou furtos. Na diocese de Aveiro, após o precioso levantamento histórico e fotográfico realizado pelo padre António Nogueira Gonçalves, director do Museu Machado de Castro,em Coimbra, entre 1944 a 1951, foram publicados, em 1959,
1981 e 1991, três volumes dedicados ao inventário artístico do Distrito de Aveiro. Valioso contributo para o conhecimento e estudo do património da diocese, por acção do Monsenhor Aníbal Ramos, Presidente da Comissão Nacional de Arte Sacra e do Património Cultural da Igreja e seu representante, foi incluído em 1962 no inquérito realizado às paróquias com campo descritivo para arrolamento de bens imóveis, móveis e arquivo histórico, arquivados na Cúria diocesana de Aveiro.
Desde 2005 que a nossa acção nas paróquias da diocese de Aveiro se vem efectuando no sentido de colmatar a falta de uma estrutura/grupo de trabalho criado para este fim.
Foram inventariadas, nas exigências acima referidas, as paróquias da Vera Cruz de Aveiro, São Pedro de Aradas, São Salvador de Ílhavo, Santa Eulália de Aguada de Cima e iniciado em Março deste ano o levantamento da Sé de Aveiro, paróquia de Nossa Senhora da Glória. Conscientes que a salvaguarda
deste património não se esgota no seu inventário,promoveu-se, em Junho de 2011, uma formação em conservação preventiva e salvaguarda do património paroquial, destinada aos seminaristas da diocese, acção importante que se deveria estender no futuro a todos os zeladores e responsáveis paroquiais.
É certo que ainda muito está por fazer. A título de exemplo, em 2009, na vaga de assaltos de igrejas que assolou o arciprestado de Águeda, foi furtada a custódia paroquial de Belazaima do Chão, exemplar de ourivesaria singular que cremos do século XVI. Sem um único registo de imagem, sem conhecimento aprofundado deste património não nos foi possível reparar ou efectuar diligências para colmatar esta perda. Esperamos, dentro em breve, e à semelhança das dioceses mais avançadas no trabalho de disponibilização
de conteúdos online, disponibilizar e divulgar todo este repositório.



quarta-feira, 21 de março de 2012

Contributos para a História dos Arquivos da Região de Aveiro I

Linha da História - Vissicitudes

   No decorrer da história dos Arquivos aveirenses, ocorreram diversos episódios que comprometeram e criaram grandes hiatos no conhecimento que temos sobre a cidade de Aveiro e sua região, condicionando a informação que hoje dispomos. 

   A título de exemplo podemos relembrar alguns desses momentos. Em 20 de Julho de 1864, ardeu o antigo Paço Episcopal onde, desde 1847, se achavam instaladas as repartições do Governo Civil e da Fazenda Pública. Foi um fogo apavorante e que causou avultados prejuízos, tendo-se perdido nele, muitos e importantíssimos documentos. 

   A 17 de Outubro de 1942 deflagrou um pavoroso incêndio no edifício do Governo Civil de Aveiro que dizimou preciosa documentação sobre a cidade de Aveiro e suas instituições. Mas não só as catástrofes naturais conduziram a substanciais perdas. 

   As constantes demolições efectuadas durante o século XIX das igrejas mais importantes da cidade, levaram também à perda de grande volume de documentação: 

1836 demolição da Igreja Matriz de São Miguel de Aveiro
1844 demolição do passal e da Igreja Matriz de São Pedro de Aradas
1858 demolição da Igreja Matriz do Espírito Santo de Aveiro
1875-76 demolição da Igreja Matriz da Vera Cruz
1885 demolição do Convento e Igreja da Madre de Deus de Sá de Aveiro (e muitas outras Capelas: Santa Catarina, Santo António, Nossa Senhora da Graça, São Paulo e São João do Rocio). 

   No século XX com a implantação da República e publicação da Lei de Separação das Igrejas do Estado que retirava à igreja católica a posse dos seus bens, grande parte dos arquivos das Paróquias foram confiscados pelas novas comissões de freguesia, determinando que: “todas as catedrais, igrejas e capelas, bens imobiliários e mobiliários, que tem sido ou se destinavam a ser aplicados ao culto público da religião católica e sustentação dos ministros dessa religião..., são declarados pertença e propriedade do Estado e dos corpos administrativos, e devem ser, como tais, arrolados e inventariados. Os bens usurpados foram incorporados nos “próprios da Fazenda Nacional” (nacionalizados), cumprindo o artigo 111º da Lei de Separação e seriam aplicados a fins de interesse público (por exemplo, residências paroquiais transformadas em escolas). Muitos dos bens e arquivos das Paróquias foram parar às mãos de particulares e grande parte encontra-se hoje à guarda das actuais Juntas de Freguesia.

O Arquivo Histórico Municipal de Aveiro e um dos mais importantes para a história local e identidade de da região de Aveiro e sua população. 
O Arquivo Histórico Municipal, instalado na Biblioteca Municipal, é composto por vários milhares de documentos, sendo que o mais antigo data de 1368 e é uma carta do Rei D. Fernando sobre os besteiros (uma classe de militares). Correspondência, actas, plantas, relatórios, editais, tombos… a infinidade de documentos é grande e relata a história administrativa de Aveiro até 1960, concretamente dos concelhos de Eixo, Requeixo, Esgueira e Aveiro. “Trata-se de documentação administrativa produzida e recebida pela Câmara Municipal e que conta a história local como nenhuma outra.
Segundo o relatório do Governador Civil de Aveiro de 1859, João Silvério de Amorim da Guerra Quaresma 1859, descreve que à data o Arquivo Municipal de Aveiro existia nos Paços de Concelho, sendo seu Arquivista José Ferreira Correia de Sousa nomeado a 18 de Dezembro de 1849 que em visita refere que se encontrava em regular função embora estivessem por selar 3 livros antigos de registos de hipotecas e doze livros de registo de testamentos.

Arquivo Distrital de Aveiro (ADAVR)

O Arquivo distrital de Aveiro (ADAVR)foi criado em Maio de 1965, três décadas e meia depois da publicação do Decreto nº 19952, de 27 de Junho de 1931, que estabelecia «que fosse criado, em cada sede de distrito da metrópole e ilhas adjacentes, um arquivo regional, destinado a recolher, conservar e catalogar os documentos ainda na posse de entidades várias, à semelhança daqueles arquivos que já existiam nalgumas dessas cidades». Contudo, durante a década de 60 de 1900, a Câmara Municipal de Aveiro (CMA) e Junta Distrital de Aveiro (JDA) nada decidiram, alegando indisponibilidade financeira.

Em Outubro de 1971, O ADAVR abriu, finalmente, ao público. Legalmente, a Junta Distrital era responsável pelo pagamento dos salários e fornecimento de materiais, o Ministério do Interior nomeava a Direcção do Arquivo, enquanto a Câmara aveirense fornecia o espaço para a instalações da Instituição. As primeiras incorporações, constituídas por documentos notariais e paroquiais, tiveram lugar desde Setembro de 1971 até ao final de 1972, provenientes do Arquivo da Universidade de Coimbra. Deram, logo aí, entrada no Arquivo Distrital de Aveiro 19.775 unidades referentes aos dezanove concelhos do Distrito, grande parte correspondente ao fundo de registos paroquiais.

O Decreto-Lei 149/83, de 5 de Abril, logrou trazer alterações importantes para os Arquivos Distritais, nomeadamente, através de novas atribuições, tais como: promover o conhecimento público dos acervos documentais, quer dos arquivos próprios, quer dos existentes na região; fornecer apoio técnico em matéria arquivística aos arquivos do distrito que o solicitem; funcionar como serviço de informação documental da região. Aquele normativo legal conferia, ainda, funções certificativas aos Arquivos Distritais

Quanto ao órgão que tutela o ADAVR, o Instituto de Arquivos Nacionais /Torre do Tombo (IAN/TT), é no final da década de 1980 que ganha os contornos que ainda hoje possui. Com efeito, a Torre do Tombo – arquivo central do Estado português – acabou por ser fundida com o efémero Instituto Português de Arquivos (1988-1992), predecessor do IAN/TT, dando origem a um organismo, denominado Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, que reunia as competências de arquivo nacional, de agente coordenador do sistema de arquivos e de instrumento de concepção e de execução da política arquivística nacional. O actual órgão coordenador é a Direcção Geral de Arquivos. Para mais informações veja-se o endereço http://www.dgarq.gov.pt

Entretanto, no início da década de 1990, a Assembleia Distrital de Aveiro (antiga Junta Distrital de Aveiro) deixa de intervir na gestão do ADAVR, com a publicação do Decreto-Lei nº 5/91, de 8 de Janeiro. Foi o fim de uma relação que começou em 1965 e que se estendeu até uma altura em que as Assembleias distritais estavam financeiramente exauridas. Convém, para a posteridade, louvar a persistência da Junta/Assembleia Distrital de Aveiro para que este importante serviço cultural pudesse ter a sua génese e, durante todos aqueles anos, garantida continuidade. Apesar da insuficiência das instalações, de salientar, ainda, a disponibilidade da Câmara Municipal de Aveiro, já que, ao facultar a pedido da Junta/Assembleia Distrital, o usufruto de espaços municipais, mesmo que a titulo provisório, permitiu assegurar o funcionamento do ADAVR. Recordemo-nos que alguns dos Arquivos distritais criados pelo Decreto-Lei nº 46350, 22 de Maio de 1965, como os de Bragança, Beja, Castelo Branco, Guarda e Viana do Castelo, nem sequer tinham chegado a funcionar no início da década de 1980…

Já nas novas instalações, em 2002, o Arquivo foi “invadido” com inúmeros pedidos, satisfeitos gradualmente e na medida das disponibilidades humanas e materiais. Actualizaram-se as incorporações respeitantes às Conservatórias do Registo Civil e dos Cartórios Notariais; iniciou-se a recolha de processos judiciais junto dos Tribunais de Comarca. Foi também realizada a transferência de arquivos judiciais do distrito de Aveiro, sob custódia do Arquivo da Universidade de Coimbra, pertencente às Comarcas de Albergaria-a-Velha, Anadia, Arouca, Estarreja, Feira e Ovar (totalizando cerca de 800 metros lineares), que se encontram, presentemente, em fase de intervenção técnica. O Arquivo foi, ainda, contactado pela Associação de Municípios da Ria (AMRIA) para receber todo o material pertencente à Junta/Assembleia Distrital de Aveiro (cerca de 125 metros lineares), cuja documentação está já à disposição dos utentes.

O Arquivo Distrital de Aveiro é actualmente detentor de um acervo documental com cerca de 150.000 documentos, ocupando 4.500 metros lineares de prateleira. Esta Instituição e a sua equipa têm por objectivo fundamental e preocupação prioritárias sensivelmente as mesmas que presidiram à sua génese: incorporar, preservar, inventariar, catalogar e difundir o património documental pertencente ao Distrito.

Cumpre-se, actualmente, o desígnio da actualização do Arquivo Distrital de Aveiro, criando-se mais condições para que os serviços passem a funcionar de maneira mais eficiente, quer no plano dos meios técnicos, quer no da qualidade dos serviços prestados, ao mesmo tempo que se reforça a sua capacidade de se promover e garantir o acesso à informação a um número cada vez maior de interessados.

A implementação de um software de descrição arquivística (DIGITARQ), a normalização dos procedimentos técnicos no tratamento da documentação, a comemoração dos seus 35 anos de funcionamento com diversas actividades, o lançamento de um boletim informativo bimestral, a criação de raiz de um site de Internet para o ADAVR, o desenvolvimento de um software interno para registo e cadastro de utentes do ADAVR e da documentação requisitada, a criação de sinergias com Instituições do Distrito e o reforço das existentes com o Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, a execução de diversas acções destinadas aos cidadãos que pretendam conhecer um pouco mais do património cultural da região (Quartas no Arquivo), entre outras medidas, transformarão, paulatinamente, o Arquivo Distrital de Aveiro numa Organização de referência no panorama cultural e arquivístico nacional.